Produção de Comédia Dramatúrgica
De Thiago Camacho
A Gaivota
Cena 1 – O Rompimento da Paz
Uma gaivota pomposa e
exibida anda por uma praia pouco movimentada por humanos, mas agitada por
outras gaivotas barulhentas. Avista dois homens, já conhecidos seus, em atitude
suspeita, vestidos para caça e os questiona. Obtém como resposta algo que não
queria ouvir, eles estão caçando gaivotas para um novo cardápio do restaurante
de Daduco.
A gaivota: Olá, o que fazem os senhores aqui?
Daduco: Não nos cumprimente, senhora Gaivota.
Infelizmente já não podemos trocar prosa, agora estamos separados por um
conflito, que é justo.
Seleno: Evite o contato, ave de rapina, você já não é
mais amiga.
A gaivota: Ora, ora, senhor Sereno...
Seleno:
Eu me chamo Seleno, Gaivota.
A
gaivota: Tudo bem, quem confunde uma ave nobre como eu com uma ave de rapina...
O que é confundir um nome esquisito, não? Eu nunca quis ter muito contato sabe,
mas a educação tantas vezes me forçou. O que fazem em meu habitat se resolveram
me proporcionar o prazer de não vê-los mais? Ah, já sei, querem passear na casa
dos outros... Isso é tipicamente humano.
Daduco: Sem mais lorotas, ave. Nós estamos aqui caçando
gaivotas para o novo cardápio de meu restaurante.
A gaivota dá uma gargalhada e questiona: Como eu
esperava, vão tentar salvar aquela espelunca com essa novidade ridícula? Olha,
seu Caduco...
Daduco: Eu me chamo Daduco, ave...
A
gaivota: Que seja... Irei ter com a sociedade protetora dos animais caso os
senhores insistam nessa ideia absurda. O que os faz achar que podem comer a
nossa carne, cometerem esse crime de assassinato?
Seleno: A nossa superioridade.
A
gaivota: Olha, Seu Chuvisco...
Seleno: Eu me chamo Seleno, insolente!
A gaivota: Tudo bem, Seu Seleno Insolente... Quero apenas me certificar do por que eu seria inferior aos homens?
Daduco: A nível de consciência e inteligência.
A Gaivota: Deve ser por isso que os senhores faliram um
restaurante. E agora querem fazer um holocausto na tentativa de salvar aquela
espelunca. Vocês humanos são capazes de destruir o planeta com toda a sujeira
que produzem, são verdadeiras máquinas de produzir lixo, de matar árvores que
fornecem a vocês o oxigênio, são tão tolos que destroem a própria
sobrevivência, extinguem animais, detonam a água de que tanto precisam e
utilizam a consciência que alegam ter para exterminarem uns aos outros,
produzindo armas de guerra e bombas atômicas capazes de arruinar todo o
mundo! E sou eu, uma simples Gaivota, que vive apenas do necessário, que tenho
minha vida baseada completamente no sustentável e que ainda mantenho o controle
das cadeias alimentares e do equilíbrio no meio ambiente, embelezando a visão
ordinária de vocês, que sou inferior? Eu e minhas semelhantes? Ainda sou caçada
para servir de jantarzinho num boteco falido de um administrador de quinta
categoria chamado Caduco... Devo eu me
considerar inferior de acordo com o bom senso que vocês dizem ter?
Daduco e Seleno tentam argumentar, mas a gaivota
interrompe:
Eu sou muito mais instintiva e organizada do que vocês
que só raciocinam desordem.
Daduco: Olha, senhora gaivota, você está falando de forma
genérica...
A gaivota o interrompe: Vocês que trabalham o dia
inteiro, vocês que são escravos do dinheiro...
Seleno: Escute, sua galinha voadora...
A gaivota torna a interromper: Aquele que subestima uma
gaivota, não passa de um idiota...
Daduco: Eu sei que em parte você parece ter razão, mas...
A gaivota impede a argumentação deles, tornando a
discussão baseada no viés ideológico unilateral: Ser humano a tudo complica... Ser
humano para comunicar precisa ser poliglota, não falam língua única como uma
gaivota...
Os dois começam a andar de um lado para o outro,
cochicham, espiam de soslaio, enquanto a gaivota, pomposa, senta na areia para
tomar um sol.
Cena 2- Quem é
inferior?
Os dois amigos
retornam e falam com a gaivota, enquanto isso, ela continua na mesma posição,
tomando sol tranquilamente, parecendo não ouvir o que dizem.
Daduco: Onde já se viu darmos ouvidos a essa coisa?
Seleno: Essa coisa só sabe fazer barulho...
Daduco: Nós não vamos nos deixar convencer por isso,
vamos?
Seleno: Claro que não, os argumentos dela são... São...
Daduco: São fajutos?
Seleno: Um pouco infundados?
Daduco: Desconexos?
Seleno:
Argumentos de uma gaivota...
Daduco: Talvez faça algum sentido?
Seleno: Talvez tenha alguma coerência?
Daduco: Se tiver, a contrariaremos?
Seleno: A contrariaremos por orgulho?
Daduco: Que mal há em contrariar uma gaivota?
Seleno: Orgulho é uma coisa ruim?
Daduco: Orgulho é uma coisa boa!
Seleno: É verdade, muito boa.
Daduco: Excelente.
Seleno: Gloriosa.
Daduco: É?
A gaivota finalmente se move e interfere: O grande... O
mais poderoso... O maior de todos os orgulhos... Está em não ter orgulhos...
Seleno: Ah cala esse bico, pelo amor...
Daduco:
Escute, seu passarinho atrevido...
A gaivota: Escute o senhor, seu Balduco...
Daduco: É Daduco...
A gaivota: Isso mesmo, seu Maluco, entre cantos de
gaivotas, a voz humana é um mal que não deve ser levado em conta, creio que os
senhores podem ir pra casa refletirem o inevitável: eu tenho razão, eu sou
superior a vocês, que não são capazes de articular defesa intelectual, e por
isso recorrem ao orgulho, e eu com minhas belas plumas...
Seleno: Penas...
A gaivota: Plumas... Ficarei aqui tomando sol.
Cena 3-
Os dois amigos voltam
a andar para lá e para cá. Cochicham novamente, visivelmente encabulados e
retornam a falar com a gaivota, que agora com óculos de sol, está deitada
pomposa na areia.
Daduco: Dona gaivota...
A gaivota responde: Dona não, senhora gaivota...
Seleno: Esse animal tem o poder de me irritar...
A gaivota: Isso é estresse, tipicamente humano... Mais um
atributo de inferioridade, e vocês nem voar podem... Voar desestressa, alivia...
Vocês só trabalham e só se estressam... É como eu sempre digo, o homem trabalha
o dia inteiro, o homem é escravo do dinheiro... No Stress.
Daduco: Para de piar inglês, andorinha.
Seleno: Nós ainda não nos demos por vencidos...
A gaivota: São tão rasos que esvaziaram num só gole...
Daduco para o espectador: Vocês entendem o que diz esse
pardal?
A gaivota para o espectador: Vocês não se ofendem de
pertencerem à mesma espécie?
Seleno: O que ela está querendo dizer com isso em?
A gaivota: Quem subestima a gaivota... Não passa de
idiota.
A gaivota voa e bate uma de suas asas na face de Seleno,
que fica cheio de penas.
Os dois amigos saem enfurecidos e humilhados.
Cena 4- O singelo
engano
Seleno desabafa com a
cozinheira, Anímora: Veja como estou cheio de penas... Que dia, que dia
terrível!
Anímora: Aposto que se meteu entre aquelas gaivotas. Não
conseguiu caçar nenhuma?
Daduco: É que argumentaram em defesa delas...
Anímora: E os convenceram?
Seleno: Em hipótese alguma!
Anímora: Então por que não trouxeram as gaivotas?
Daduco: Porque... Porque... Por que mesmo, Seleno?
Seleno: Oras, claro que porque... É lógico que... Ué diz
aí cara!
Anímora: Mas são duas toupeiras mesmo, foram convencidos.
Aposto que por uma...
Daduco: A gaivota não nos convenceu coisa nenhuma.
Anímora: Então esse é o nome da sujeitinha...
Daduco: Mas nós não fomos convencidos por ela! Viemos lhe
buscar para que dê seu parecer.
Anímora: Sei, pode deixar que eu vou e teremos uma prosa
de mulher pra mulher...
Seleno: Mulher?
Anímora: É, ou por acaso foram convencidos por um
travesti?
Daduco: O que disse?!
Anímora: Esquece, deixa pra lá. Vamos para eu conversar
com a fulana.
Seleno: Isso, vamos para ela conversar com a gaivana,
quer dizer, gaivona... Não...
Anímora: Já entendemos, vamos logo!
Cena 5 – Debate
entre as espécies
Anímora, na praia:
Mas é aqui que vamos conversar? Nessa praia de aves barulhentas?
Daduco:
Onde mais?
Anímora: Na casa dela.
Seleno: Está maluca?
Anímora: Por que, Seleno?
Daduco: Você bebeu?
Anímora: Olha o respeito!
Daduco: Desculpe, mas é que...
Anímora: Já imaginava, ela é casada né?
Seleno: Anímora, você se sente bem?
Anímora: Eu é que pergunto, vocês dois estão tão
estranhos!
Daduco: Nós?
Anímora: O que um rabo de saia não faz com dois homens
em...
Seleno: Rabo de saia?
Anímora: Não se faça de besta!
Seleno: Como?
Anímora: Nada. Ela é bonita é?
Daduco: Fedorenta e feia.
Anímora: O quê? Vocês não tem vergonha mesmo né? Eu toda
prendada, cheirosa, bem arrumada... E vocês vem até esse lugar pescar piranha
nojenta?
Seleno: Anímora, você continua indo ao seu psiquiatra?
Anímora: Parei por um tempo, por quê?
Daduco: Está explicado.
Seleno: Não pare de ir!
Anímora: Vocês me chamaram até aqui pra me ofender, é
isso mesmo?
Seleno: Desculpe, esqueça.
Anímora: E então, onde está a beltrana?
Daduco: A gaitrana... digo... A gaivana... Ou melhor, ah
não sei!
Anímora: Onde?!
Seleno: Calma, ela talvez demore a aparecer. Deve estar
em revoada.
Anímora: Revoada? Ah entendi, vocês mesmos assumem que se
enrabicharam por uma boa bisca. E os dois ainda por cima!
Daduco: Você está achando que nós estamos interessados na
gaivista? Quer dizer, na gaivota? Você não pode estar no juízo perfeito!
Seleno: Anímora, no estado em que você está não poderá
argumentar, você dormiu bem esta noite?
Anímora: Agora estou entendendo tudo, vocês estão de
ladainha comigo, ela deve ser bonita... Mas sério que é muito mais do que eu?
Porque para me desprezarem e caírem de quatro, os dois, para ela...
Daduco e Seleno se entreolham balançando negativamente a
cabeça.
A gaivota chega e pousa em frente a eles.
Anímora reclama:
Que bicho barulhento!
Daduco: Aí está a gaivota.
Anímora: Onde?
Seleno: Aí, olha!
Anímora: Cadê que eu num to vendo!
Daduco: Na sua frente.
Anímora: Em que lugar, pelo amor de deus?!
Seleno: Você está louca?
Anímora: O que disse?!
Seleno: Desculpe, mas eu já disse, a gaivota está na sua
frente!
Anímora: Mas eu não estou falando dessa ave, onde está a
mulher?!
Daduco: Que mulher?!
Anímora: Ah vocês estão de brincadeira com a minha cara!
Seleno: Não estou te entendendo, Anímora.
Anímora: Ah você que não está me entendendo, Seleno?!
A gaivota: Como vai a senhora?
Anímora grita.
Seleno:
O que foi?
Anímora: Esse bicho está falando! O que que é isso?
Daduco: Pois é, e com ela que temos de argumentar.
Anímora: Com essa ave?
Seleno: Sim, ela é a gaivota em questão.
Anímora: Ah eu tenho mais o que fazer, vocês querem que
eu fique aqui discutindo com uma gaivota?!
Daduco: Para isso você veio, não?
Anímora: Eu me recuso a discutir com uma ave.
A gaivota: Escute, dona Carnívora...
Anímora: Meu nome é Anímora, querida gaivota.
A gaivota: Isso mesmo, Herbívora... Quero dizer que no
último encontro eu desmoralizei seus queridos amigos assassinos de animais
indefesos, e que comprovei cabalmente por argumentação lógica que são
inferiores a todos os animais... Pelo potencial em destruir tudo no mundo que
nenhuma outra espécie tem, e por ainda terem a pretensão de chamar isso de
consciência ou racionalidade... Dado esse fato, que só poderia ser proveniente
de humanos, devo sugerir o reverso da situação: São vocês humanos que devem nos
servir de alimento, uma vez que são inferiores. Minhas companheiras gaivotas
concordaram por unanimidade. Cansadas de comer peixes, agora querem
experimentar um novo cardápio: carne humana. Brilhante ideia, não acham?
Um grupo de gaivotas começa a berrar incessantemente.
Anímora: Silêncio, pelo amor de deus! Que barulho
infernal! Vocês devem morrer só por fazer tanto barulho, ninguém aguenta
isso! O que você disse vai contra toda a lei da cadeia alimentar, minha
querida. O homem domina a natureza...
A gaivota: E a destrói... O que não significa
superioridade, pelo contrário... E cadeia alimentar não condiz com uma espécie
que se diz pensante... Vocês não encabeçam cadeia alimentar alguma dado que não
possuem características de animais carnívoros.
Anímora: Isso é o que você diz para defender essas
gralhas...
A gaivota: Isso é tudo que você tem a argumentar? Isso é
o que diz a ciência para assegurar o que deveria ser espontâneo, o respeito
pela vida!
Anímora: Não deem ouvidos a essa coisa, vamos torcer o
pescoço dela e pronto.
A gaivota: Não deem ouvidos a dona Carnívora, vamos
bica-la até ela sentir na pele o holocausto que faz todos os dias naquele
restaurante.
Anímora: Gaivota barulhenta! Mal educada, para de fazer
barulho!
Cena 6- Um
ambientalista
Um ambientalista, seu
Lenouro, que passeia pela praia desenvolvendo seus estudos biológicos ouve a
discussão e intervém: Que absurdo! Eu, pró-vegetariano, tenho que ouvir tanta
besteira num lugar tão bonito... Será que vocês não percebem o quanto são
ridículas? Mulher e gaivota discutindo quem deve comer quem?!
Anímora: E o senhor quem é?
Seleno: Quem lhe chamou na conversa?
Daduco: O que tem a acrescentar ao debate?
A gaivota: O que quer aqui ecochato?
O ambientalista: Sou Lenouro, pró-vegetariano. É tão
fácil resolver o problema de vocês. Ninguém precisa sentir dor ou morrer
brutalmente. Comam vegetais. Eles não sentem dor. Não há necessidade de nenhum
de vocês cometer esse sacrifício.
A gaivota: Pois bem, Seu Cenouro. E quem foi que lhe
disse que eu aprecio comer capim?
Daduco: Acha que tenho cara de cavalo?
Anímora: E eu de vaca?
O ambientalista: Querem que eu diga a verdade?
Anímora: Como é que é?!
Seleno: Não vamos discutir mais, ignorem essa mala sem
alça e vamos decidir de uma vez quem é que vai ser a comida!
Cena 7 – Um
argumento inesperado
Um mendigo, Seu Viriga, está passando espiando de soslaio
e interfere imediatamente ao ouvir a palavra comida: Oi, meu nome é Viriga. Eu
poderia dar uma sugestão?
Todos o recebem com repulsa.
Anímora: O que deseja?
Daduco: O que quer?
Seleno: Pois não?
Lenouro: Quê?
A gaivota: Hã? Hã? (Faz um ruído estridente de gaivota).
Todos colocam as mãos na orelha, tapando o ouvido.
O mendigo, Seu Viriga: Se alguém tem que comer aqui, sou
eu, que sempre passei fome. Vocês podiam servir de alimento para mim. Seria
muito mais justo, viu?
Todos se entreolham comovidos e calados. Quase choram, e
fazem expressão de vergonha, tristeza e arrependimento.
Cena 8 – Final – A
união das espécies
Em um restaurante
vegetariano estão todos comendo unidos e felizes. Humanos e gaivotas dividem o
jantar numa exorbitante bagunça e gritaria. Vez ou outra Anímora faz expressão
desgostosa com tanto barulho, mas também interage.
Seu Viriga, o mendigo, que também está comendo, feliz
como nunca, diz, humildemente ao seu modo: Eu queria agradecer pela comida,
mesmo que seja tudo folha, eu nunca comi tanto.
Lenouro: Está gostosa?
Seu Viriga: Muito.
Seleno: Sabe, queria me desculpar com a gaivota e o seu
Lenouro, pois essa comida está mesmo deliciosa e acho que não há mesmo
necessidade de sacrifícios.
Anímora: Pois é, quero me desculpar e agradecer a
presença de todos, inclusive desses bichinhos barulhentos que foram convidados
e estão aqui.
A gaivota: Também quero me desculpar, e agradecer, mesmo
que o nível intelectual do jantar não esteja lá muito bom, devido a umas
espécies e outras.
Todos riem.
Lenouro: E o senhor nada diz, Daduco?
Daduco está extremamente emburrado: Digo, digo que eu fui
o sacrificado. Planejei uma noite com cardápio novo, com carne de gaivota, uma
novidade para faturar e acabei gastando todo meu dinheiro nesse jantar de capim
temperado a orégano... Ninguém precisou se sacrificar, só eu né?
Todos gargalham novamente.
Thiago Camacho
Thiago Camacho